No dia 31 de outubro se comemora o dia da Reforma Protestante, que em 2020 completa seus 503 anos. Essa Reforma foi um marco para o cristianismo, com ela a igreja passou a ter um novo rumo, buscando sua essência, a mesma do período dos apóstolos. Com isso, a igreja teve a oportunidade de se contextualizar e o cristianismo avançar por novos meios e pelos grupos missionários. A Reforma foi o início de uma nova história para o cristianismo, de expansão a nível global.
Vale enfatizar que antes da Reforma a Igreja Católica era a detentora, portadora do domínio e exclusividade dos fiéis. Em alguns casos, sem ao menos desconfiarem, fiéis eram extorquidos e enganados pela própria igreja, onde também abusos eram cometidos de diversas maneiras. A história destaca a prática da inquisição em que confissões eram arrancadas e algumas vezes colocadas na boca de hereges por meio de torturas que os levavam a confessar tudo o que o inquisidor quisesse. Praticavam as vendas das indulgências pelas quais os fiéis compravam sua salvação, um lugar no céu para si ou até mesmo para familiares já mortos. Nesse panorama nasce o movimento reformista, que não aceitava o abuso cometido pela Igreja Católica contra seus fiéis, nem a prática das indulgências que rendia grandes lucros à Igreja.
É bom lembrar que, em toda a história da humanidade, Deus agiu todas as vezes em que seu povo sofreu abusos, perigos dos mais diversos tipos “… o Senhor Deus é o que peleja por nós” (Dt 3.22), para que a história do povo de Deus continuasse, levantou líderes como patriarcas, profetas, juízes e reis, líderes corajosos (Nm 27.18), para que, por meio de seu poder e autoridade lutassem pela continuidade de sua obra redentora.
Lutero é evidenciado, mas não é o único idealizador. Após muitas tentativas frustradas de reformar a própria Igreja Católica, devido à grande oposição às suas ideias, se viu na condição de formar uma outra comunidade, por meio do rompimento com a Igreja Católica. Sobre essa questão González (1995, p.107) afirma que:
“o mais importante sistematizador da teologia protestante no século XVI foi João Calvino. Enquanto Lutero foi o espírito fogoso e propulsor do novo movimento, Calvino foi o pensador cuidadoso que forjou, das diversas doutrinas protestantes, um todo coerente”.
Na história da Reforma, muitos outros foram rompendo com o catolicismo, e com isso destacam-se também muitas mulheres, não evidenciadas na história, mas que foram imprescindíveis para a continuidade do cristianismo e sua missão. É a essas mulheres o maior destaque dado nesse artigo. A história, por meio de cartas, livros, mostra o trabalho e a contribuição de muitas mulheres. Fora essas a seguir destacadas, houve muitas outras que atuaram de forma efetiva e criativa, como explica Ulrich, doutora em teologia, em seu artigo. A partir de um livro de Martinho Lutero intitulado “Da Liberdade Cristã”, muitas mulheres se envolveram em questões teológicas e políticas buscando saída para enfrentar os problemas de seu tempo. Por outro lado, a história mostra também que elas foram silenciadas e invisibilizadas, um dos motivos da história ter chegado até os dias atuais destacando com mais ênfase Martinho Lutero e João Calvino como heróis, com suas valiosas contribuições. Através das críticas de Lutero muitos monges e monjas saíram dos conventos e se casaram, constituindo famílias. Isso se deu porque a vida dentro de um monastério era muito rígida, Lutero descreveu como “uma prisão eterna”. Porém, nem todas as mulheres que aderiram à Reforma saíram do convento.
Katharina von Bora Lutero é a primeira destacada. Casada com Lutero, descrita por Ulrich como ousada, empreendedora e empoderada para seu tempo, viveu em um convento e sua vida teve um rumo diferente depois de ler os textos de Martinho Lutero sobre a graça e a fé. Ela e outras freiras foram escondidas em barris de peixes e fugiram do convento. As que não retornaram para suas famílias, foram acolhidas por outras famílias. Katharina mostrou à sociedade que era possível viver a graça de Cristo e ter direito à salvação sem estar “presa” a um convento. Foi uma mulher relevante para a sociedade e a família, pois participava de conversas teológicas, negociava no mercado (normalmente homens negociavam), era uma ótima administradora dos bens familiares e tinha conhecimento em medicina caseira. Tudo o que ela havia aprendido aplicava no dia a dia, fazendo a diferença em sua época. Foi uma parceira ao lado de seu marido na Reforma. Foi uma mulher que quebrou o paradigma de apenas “esposa e mãe”, rótulo dado às mulheres da época.
Outra Reformadora é Elisabeth von Meseriz Cruciger, conhecida como a primeira compositora protestante. Seu hino “Senhor Cristo, o único filho de Deus, pai em eternidade” foi incluído no hinário por Lutero, em Wittenberg. A letra deste hino demonstra seu conhecimento teológico, pois faz menção a textos bíblicos. Uma teóloga-compositora.
Uma mulher com muita influência pública e política na Idade Média foi Elisabeth von Calenberg-Göttingen, duquesa de Braunschweig-Lüneburg, conhecida como regente, reformadora, escritora e mãe da Igreja. A história a descreve como uma mulher que introduziu a reforma protestante na Baixa Saxônia.
E por fim, Katharina Schütz Zell, conhecida como pregadora, teóloga, mulher reformadora e mãe na fé. Ela defendeu seu esposo e seu casamento escrevendo uma carta ao clérigo, questionando as mentiras que contavam sobre seu esposo, o que mostra seu conhecimento teológico, pois usou textos bíblicos para a defesa. Após seus filhos morrerem ainda pequenos ela se sentiu motivada a escrever. Ela escondeu diversas pessoas perseguidas por causa da Reforma e encorajou muitas mulheres que se viam sós, devido às perseguições a seus maridos. Seu marido nunca a impediu de escrever seus textos, os dois atuavam na Reforma lado a lado e ela era tratada por seu esposo como ministra/pastora, o que era incomum para a época. Foi uma lutadora pela igualdade de homens e mulheres no serviço da igreja e pela divulgação pública do evangelho em Palavra e Ação.
Quantas histórias inspiradoras! Essas mulheres tinham em comum o uso de seus dons, talentos e suas influências a serviço da Reforma, a serviço de Cristo. Essas são apenas algumas que receberam mais destaque, porém existem muitas outras mulheres esquecidas na história. Juntas, todas contribuíram para que a Reforma, juntamente com líderes homens, pudesse acontecer. Foram mulheres missionais em sua época.
Isso revela o quanto mulheres foram usadas por Cristo, o dono da missão, para a propagação do evangelho e da história da igreja. Todas elas foram e sempre serão importantes em toda e qualquer fase que a igreja de Cristo passar. Da mesma forma que Deus levantou homens já citados como líderes corajosos, também levantou e sempre levantará mulheres corajosas que se doam em busca de igualdade de gênero (mesmos direitos entre homens e mulheres), respeito pelas diferenças étnicas, culturais e sociais, barreiras a serem ultrapassadas pela igreja hoje, entre outras questões a serem reformadas. Quais paradigmas a igreja contemporânea precisa quebrar? Existe, hoje, uma reforma? Ou a necessidade da mesma? Se sim, o que você leitora pode fazer para contribuir? Sua contribuição, mulher, é fundamental!
A história da igreja e da nossa vida é Cristo quem escreve, mas ele nos usa para fazer parte dessa história. Celebre esse dia nessa perspectiva, você faz parte dessa história, pois “você recebeu a capacidade de dar forma ao futuro” (STANLEY, 2008, p.164). Sinta-se encorajada com essas histórias, e faça parte da história da igreja ativamente. Sirva a Deus com seus dons, talentos e influências. Ele lhe chamou para viver de forma missional.
Texto por: Eula Paula Basto de Araújo, casada com Odeir, mãe da Julia. Família pastoral na IAP de Piracicaba. Formada em Teologia e Gestão Empresarial, cursa letras e MBA em Gestão Escolar na USP/ESALQ. Integrante da equipe do Ministério de Ensino da Convenção Paulista.
Referências
BÍBLIA, A. T. Deuteronômio e Números. NTLH. Nova Tradução na Linguagem de Hoje: Antigo e Novo Testamentos. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.
GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo/Justo L. González; tradução Itamir N. de Sousa. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 107, 6 v.
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STANLEY, Andy. O Líder da Próxima Geração: qualidades de liderança que definirão o futuro/ Andy Stanley; tradução Marson Guedes – São Paulo: Editora Vida, 2008, p. 164.
ULRICH, Claudete Beise. A atuação e a participação das mulheres
na reforma protestante do Século XVI. Estudos de Religião. São Paulo, v. 30, n. 2, p.71 – 94, mai./ago. 2016. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ER/article/view/6846. Acesso em: 26 de outubro de 2020.
WACHHOLZ. Wilhelm. História e Teologia da Reforma: introdução. São Leopoldo: Sinodal, 2010.