Sem aniversários

O tempo é desimportante.
Quase não se veem relógios
Poucos sabem o dia do nascimento.
“Não comemoramos aniversários”

Hoje é o dia importante.
Agora é o melhor momento da vida.
Uma vida curta.

 
 
Depois do Vendaval

Quatro anos de oração.
Esperanças levadas ao céu.
Dez dias de trabalho duro.
Mãos calosas de Gilberto e José Carlos.
Vinte moçambicanos em serviço.
Deus devolve a igreja que o vento forte levou.
Ele é maior que o vento.
Anchilo está em festa!

 
 
Toca CD

Ele se aproxima acanhado.
Estou sentado debaixo de uma mangueira.
Pede licença e entrega-me um papel.
Me descreve como Vossa Excelência.
São amantes do respeito.
Sebastião quer um toca CD para ensinar música na igreja.
Não pediu nada para seu deleite pessoal.

 
 
 
Mais Três
 
Ele já tem os dele.
E não são poucos.
Ha dias em que nem consegue dar de comer aos seus.
Um pai vizinho morre.
Uma mãe da igreja, também.
Crianças pequenas sem ninguém.
Deus move o coração de um homem.
A casa de barro e palha lota.
Três a mais para o irmão Paulo criar.

 
 
O Escolhido
Nenhum marketeiro apostaria nele.
Nenhum empreendedor investiria nele.
Nenhum caça talentos descobriria ele.
Ele é de baixa estatura e magrinho.
Não tem formosura nem boa aparência.
Essas coisas não importam.
Marcelino foi escolhido para conduzir a igreja de Jesus.
O crescimento impressiona: de 9 para 18 igrejas, em cinco anos.
Sem dinheiro, sem diploma, sem estrutura…
Deus escolhe os que não são para serem.
Toma os fracos para confundir os fortes.
Deus de maravilhas!
 
 
Miojo
Estou a acender o fogo.
Fogão feito de um balde.
– Podemos ver o pastor cozinhar?
– Sim!
Água quente na panela.
Miojos a derramar.
Olhares apreensivos.
Em três minutos temos comida.
As três irmãs ficam incrédulas.
– Querem provar?
– Sim.
Macarrão a descer goela abaixo.
– Que me dizem?
– Bom (aos risos).
Agora conhecem o poderoso miojo.

O Pedido

“Me dá buleia!!
Dois meninos e uma menina pedindo carona.
Os três comigo no banco de trás.
Eles sussurram
em macua.
“Me dá um sapato!”
O pedido foi feito nos meus ouvidos.
Nem ele acredita que foi capaz de tamanha ousadia.
Medi o pé do Arlindo com uma tala.

Sei que calçar o Arlindo é privilégio que Deus dá a poucos.
“Aquele que faz aos pequeninos, a Mim o faz”.

 
 
 
Um Gesto Simples

Crianças brincando.
Sentadas no chão e em círculo.
Ossos, pedras e pauzinhos a entretê-las.
Haverá algo a acrescentar-lhes mais alegria?
Uma bola de futebol cai do céu no meio deles.
Ufos de alegria.
Chutes, gargalhadas, poeira, quedas…
Adultos não resistem e vem pra roda de bola.
Um gesto simples a contagiar uma tribo.

 
 
Biscoitos no Ar

Sol ardente, às duas da tarde na África.
Centenas de crianças esperando.
Fazem cadastro para estudar.
Almoço cozinhando nas panelas de chão.
Dois pacotes de biscoitos e um de chupa chupa nas mãos.
Em segundos, fui colocado na roda.
Mãozinhas estendidas da cor de terra.
Impossível organizar.
Só há uma saída: biscoitos ao ar.
Poucos caíram no chão.

 
 
Apenas um Caderno
Nos arredores de Malema não há sonho de consumo.
São inábeis com dinheiro.
Quase nunca falam dele.
O danado não faz parte de suas vidas.
– Oi Domingas, como foi seu dia?
– Bem. Me traz um caderno!
A menina de treze anos anda uma hora e meia de bicicleta para a escola.
Quer apenas um caderno.
 
 
Pão, e do Bom
Em Moçambique quase só se come chima.
O amido de milho branco é como arroz para brasileiro.
Poucas mudanças no paladar
De repente, um forno de tijolos.
Um paranaense amassa o trigo.
Pão, do bom.
Moçambicanos experimentando novos sabores.
– Obrigado pastor Gelson!

 
 
 
Com a Vó

Ela tem estatura baixa.
Se esforça para entender meu português.
– Quem são seus pais?
Silêncio, pausa, lábios cerrados.

Morreram!
Com quem você vive?
– Com a Vó.
Ginoca é uma entre milhares de crianças órfãs.
Em Moçambique a média de vida não chega a 50 anos. 

Pr. José Lima

A Corrida do Horror


Pode-se dizer que todo o território de Moçambique é habitado.
A estrada é uma extensão da casa.
Povo andarilho.
Uma cena comum intriga o viajante branco.
Ao avistarem o carro e a cor diferente, somem mato a dentro.
Velozes a fugir.
“Traficantes brancos raptam as meninas e as levam para países ricos”.
Seus pais as orientam a fugir como flechas.
Corrida horrenda.
Na Nova Terra, o pecado e o mal já não mais existirão.

De Joelhos

O pastor brasileiro estava a se aprontar para o almoço.
Debaixo de uma árvore, em Mutai, volta-se para a direita.
Logo o vejo de joelhos, prostrado em lágrimas.
A sua frente estava Fazbem, com trapos no corpo.
Osmar Pedro o abraçou ainda ajoelhado.
Fazbem vestiu novas roupas.
Um ano e meio depois estão frente a frente.
O pastor brasileiro voltou a chorar.
A África tem esse poder.

Vontades

A África me enche de vontades.
Queria ter uma fábrica de roupas.
Queria que o dono das havaianas viesse aqui.
Queria ter mais braços.
Queria me transformar em milhares de colchões macios.
Queria ser um pediatra.
Queria levar cinco crianças comigo.

Cultura e Dignidade

Mitilili fica no pé da grande montanha da Zanbésia.
Sentados, estamos à sombra da gigante de pedra.
Esperamos alguns promessistas descerem de lá.
Surpreendentemente, uma irmã se prostra ajoelhada ante nossa face.
Com a mão estendida expressa o seu respeito em dialeto macua.
Nao pode haver expressão mais cervil.
Sua humildade comove e nos indigna.
Seu gesto é seguido por mais três mulheres.
Se elas saudam os homens em pé, são mal educadas.
Quando a cultura solapa a dignidade, o Evangelho é contracultura.

O Rio e o Poço

Tomar água, tomar banho, fazer comida.
Baldes de plásticos na cabeça rumo ao rio Nataleia.
Mãos, pés, corpo suado.
Mulheres a descer e subir ladeiras num vai-e-vem sem fim.
Subitamente, máquinas chinesas interrompem a rotina do rio.
Em horas, água limpa irrompe das profundezas da terra.
Mãos, pés e corpo em dança.
O poço agora é o rio.
Deus socorreu o seu povo.
Pr. José Lima

Histórias que cortam a alma

Quem são nossos irmãos moçambicanos, vivendo numa realidade tão difícil?

 
 
O Menino e o Caderno
 
Ele caminha na estrada empoeirada rumo à Vila de Malema
Passos lentos mas certeiros
Lhe daria uns sete anos
Sua roupa…
Está a apertar um caderno no peito
As bordas se soltam de tão velho
Parece saber estar ali sua maior esperança
Nosso carro está a passar
Ele olha para mim pelo canto do olho
Graça que não mereço
A poeira o escondeu de meus olhos
Nem seu nome eu sei dizer

 
 
O Visionário
Dizem que a flor do campo se destaca
Das casas de barro e palha a do Feliano se destaca
Rebocada e forrada com jornais e a revista da IAP
Tem cama e mosquiteiro
Um luxo
Em redor da casa uma humilde fábrica de tijolos
“É para vender, para fazer uma casa nova e casar-me”
Nem namorada ainda tem
Prepara-se para o amanhã
Visionário
Obra do Espírito Santo
 
 
Cena Cortante
Há um ano e meio o conhecemos
Quando encostávamos o carro, o Osmar logo vinha
Tinha quatro anos
A mesma camisa e calção azul
Cruzava os braços na barriga e ficava a nos ver
Agora está com um braço e uma perna paralisados
Olha para nós e estende o braço bom
Corta o nosso coração
Recebeu carinho, biscoito e doce
Foi ungido com óleo
“Ó Deus, tem misericórdia do Osmar!”
 
O Povo da Montanha
Ela é imensa, grandiosa, magnífica.
Deus a fez exuberante e bela.
Do seu cume e das partes mais altas jorra água
cristalina.
É a montanha de Mitilile em Zambésia.
No pé dela está uma IAP com 53 pessoas.
Muitos deles trabalham e moram lá em cima.
Povo da montanha.
Povo de Deus.
Vivem bem mais “perto” dele.

 
Pr. José Lima