O poder de ser servo

Se a ambição e o individualismo ocupam lugar na igreja, passam a ser os maiores inimigos do próprio Evangelho

 
Na Carta aos Filipenses, Evódia e Síntique exemplificam a situação de muitos cristãos ao longo da história. Ambas são reconhecidas por sua cooperação com o Evangelho (Fp 4.3), mas se encontram em desarmonia em seu relacionamento na própria Igreja. Pode parecer que a concordância entre cristãos deva ser de gostos, opiniões e afetos, porém, nos relacionamentos interpessoais cabe aos cristãos, acima de tudo, a concordância no amor incondicional, princípio fundamental da fé (Mt 22:36-40; Mc 12: 29-34).
Ter opiniões, procedimentos e preferências diferentes é uma questão de individualidade, mas não pode ser de individualismo, imposição ou autoritarismo. A comunidade de Filipos manifestou-se em amor e cuidado com Paulo, amparando-o tanto com recursos materiais como humanos, de forma única. Demonstraram por diversas vezes fidelidade ao Evangelho e àqueles que o servem integralmente.
A participação marcante de mulheres como Lídia (At 16.15), Evódia e Síntique, da sensibilidade do feminino em funções importantes de liderança, pode ter colaborado para este diferencial e é um ótimo exemplo para a igreja contemporânea. Mas, fica o alerta de Paulo à possibilidade da perda de harmonia diante das diferenças surgidas nos relacionamentos interpessoais em função da procura de cada indivíduo pelos próprios interesses (Fp 2.2b-4). Afinal, individualidade e individualismo são coisas bem diferentes.
A proposta de santificação da teologia bíblica trata da busca de autocompreensão de si junto a Deus intencionando a renovação da mente (Rm 12.2) para manifestação do fruto do Espírito (Gl 5.22). O Evangelho não nos convida a anular a nossa dignidade e individualidade, mas sim, a reconhecer a dignidade e a individualidade alheias e nos dedicarmos a preservá-las. Jesus manifestou a ética divina em plenitude, por isso, Palavra encarnada (Jo 1.14). Assim, Paulo insere um hino cristológico na Carta aos Filipenses (2.6-11) que sintetiza o Evangelho e destaca o aspecto fundamental do amor encarnado, o da humildade de não se entender superior a nada nem a ninguém, que permite a verdadeira servidão.
O grande poder redentor do Cristo foi exatamente o de abrir mão do poder estruturante que surge nas relações interpessoais em todo e qualquer grupo humano, que busca promover domínio e subjugação, pois confunde a dignidade humana e a individualidade com o lugar e o papel social de cada um, o que é a contramão do conceito de Corpo de Cristo.
Isso permite compreender que a verdadeira alegria é a de aprender a viver na escassez ou na abundância, tanto material como do atendimento dos nossos anseios, pois a solidariedade dos irmãos e irmãs em Cristo, a demonstração de importarem-se e verdadeiramente apoiarem-se é o espírito de humildade e de servir do Cristo encarnado através da Igreja. Se o desejo de servir for desassociado da compreensão de que também somos obra de Deus em andamento, a ambição e o individualismo tomam lugar e passam a ser os maiores inimigos do próprio Evangelho, não precisando de forças externas à Igreja para miná-la.