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‘Até a última gota’ (de quem?)

Reflexões sobre dor, invisibilidade e empatia a partir do novo filme da Netflix.

 

“Você já teve a sensação do chão sumindo debaixo dos seus pés?” Sabe aquele momento em que o mundo parece desabar sem aviso? Tudo estava bem até o telefone tocar. Ou até o resultado médico chegar. Ou quando a escola do seu filho ligou. De repente, tudo muda, e o que antes era estabilidade se transforma em caos. Quem nunca passou por uma tempestade dessas?” Essa é a sensação que nos domina ao assistir Até a Última Gota (A Thousand and One), filme da Netflix que, com sutileza e crueza, nos leva a acompanhar um dia comum que se torna tudo — menos comum.

Em 2023, eu estava em Curitiba com minha família. Era uma quinta-feira qualquer de inverno, até que o céu escureceu e, em minutos, uma tempestade absurda se formou: granizo, vento de 100 km/h, queda de energia. Só depois soubemos que foi um ciclone bomba. A vida, às vezes, é assim: tudo muda em segundos. E o filme é sobre isso, não apenas uma tempestade climática, mas uma emocional, existencial, humana.

Janiyah, a protagonista, é uma mãe solteira, moradora de uma vila precária. Tudo em sua vida está por um fio. Mas naquele dia, o fio arrebenta. Não há respiro, não há trégua. Trabalho, escola da filha, saúde, moradia, dignidade — tudo desmorona. E o filme nos convida a ver isso pelos olhos dela, com a mesma incredulidade e dor.

 

Quando a vítima vira assaltante

Não entraremos em spoilers pesados aqui, todavia mais a frente será impossível não o fazer. Sendo assim, pare agora, assista e volte para ler o restante. Mas é possível comentar o ponto de virada: de vítima a assaltante. O filme te prende, apesar de diálogos fracos, é verdade. Como uma avalanche de más notícias. Janiyah, sufocada, empurrada pelas circunstâncias, cruza a linha. Mas também né? Tudo no mesmo dia: demissão, despejada de casa, perda do carro, vítima de assalto (e bem mais que isso), passa a ser considerada terrorista, ou seja, um dia de cão literalmente. E nem por isso nos afasta dela. Pelo contrário, a empatia cresce. E essa palavra é importante aqui, guarde a bem.

A pergunta não é: “O que você faria no lugar dela?” Já vimos outras obras falarem sobre um dia mal e de várias perspectivas. Aqui, no entanto, está mais para: “Por que ninguém a viu antes de tudo isso acontecer?”


A frase que ressoa: “Eu te vejo, Janiyah”

Duas personagens são fundamentais na trama: a gerente do banco (Sherri Shepherd) e a detetive (Teyana Taylor). Ambas, em algum momento, a sua forma dizem a frase mais poderosa do filme: “Eu te vejo, Janiyah.” Essa frase ecoa. Ecoa, porque revela o problema central: ela foi invisível em seu pior dia. E na verdade, todos nós temos dias assim, em menos grau lógico, mas todos temos. Aqui está a democracia da vida, não importa seu grau de formação, história de família, não importa o seu ‘pedigree’, o dia mal chegará! E nesse dia, todos precisamos ser vistos.
Invisível ao sistema, sim. Invisível aos órgãos públicos, também. Mas, principalmente, invisível a nós. Quantas Janiyah você cruza todos os dias e não enxerga? Gente cansada, enlutada, sobrecarregada. Gente que sorri, mas sangra por dentro. Gente que não tem para onde correr, mas mesmo assim aparece no trabalho no dia seguinte.

Jesus contou uma história sobre isso. Lembra do bom samaritano? O sacerdote e o levita passaram… e não viram. Ou preferiram não ver. Mas o samaritano viu. “Viu, e compadeceu-se dele.” (Lucas 10:33).

Nós erramos. Eu errei. Você errou.

É fácil apontar o erro da polícia, da estrutura social, da política. Difícil é dizer: “nós erramos!” Eu não vi. Eu não me importei. Eu transformei pessoas em engrenagens. Relacionamentos em utilidades. Vivemos tempos de IA (inteligência artificial), mas o que realmente nos domina é a RA — relacionamentos artificiais. Lembra da palavra citada lá no inicio? Essa é a grande palavra desse filme, empatia (ou a falta dela). Essa palavra tem um sentido belíssimo, significa, “doer com”. Ou seja, é sentir a dor do outrem com ele.

Spoilers aqui! Janiyah perdeu a filha. E ninguém parou para sentir isso com ela. Voltou ao trabalho no dia seguinte. Foi despejada no mesmo dia. Como sociedade, não respeitamos o luto. E como cristãos, muitas vezes também não. Nós aprendemos apenas a dizer, eu sinto muito (no melhor dos casos).

 

“Eu não quero todo esse dinheiro, só quero o meu dinheiro.”

Essa frase gritada no ápice do filme resume tudo. Janiyah não quer caridade. Quer dignidade. Ela não quer esmola. Quer justiça. Ela não quer um favor. Quer ser vista. E o que mais dói no filme não é a morte, o assalto ou o desespero. O que mais dói é perceber que, para o mundo ao redor dela, tudo aquilo não importa. É uma sociedade treinada, habilitada, programada para descartar.

Descartar o inquilino que não pagou e pronto de forma tão fácil, mesmo que em um momento de luto, tal como se despede na mesma situação, sabe porque? Porque no fundo não importa. O que importa para um povo que passou a “coisificar” até as coisas, as situações, e principalmente as pessoas. Ela, Janiyah, é uma coisa para tantos que não se importam. A pergunta que fica é: e para nós, importa?

 

Até a última gota

 

“De que vale um homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8:36). Talvez hoje estejamos perdendo algo mais sutil: a capacidade de ver as almas ao nosso redor. Gente que está ali, todos os dias, e mesmo assim passa despercebida. Entretanto, elas têm nome, dores, anseios, lutos não vividos; elas têm histórias! O desfecho do filme é poderoso — mas ele não termina com a Janiyah. Ele termina com a gente. Com a nossa atitude diante dos invisíveis.

Se você já assistiu ao filme, talvez esteja com o coração apertado. Se ainda não assistiu, prepare-se. Mas mais do que isso: prepare-se para ver diferente. Não espere que a vida grite até a última gota. Não espere que o outro exploda em dor, para você finalmente se importar.

Veja antes. Repare antes. Enxergue antes.

Jesus via as pessoas. Ele chegava ao ponto de externalizar essa verdade, provavelmente porque sabe como Criador, que o óbvio precisa ser dito. Diante da criatura criada, o Criador exclama: “Eu te vejo, mulher.” (João 4:7-26). “Eu te chamo pelo nome.” (Isaías 43:1)

E você? Vai continuar passando sem ver?

Gustavo Rocha | Casado com Bruna e pai de Samantha e Tito; Pastor de jovens na Promessa Cosmópolis; Trabalha como produtor de conteúdo audiovisual na APC para a TV Viva Promessa; Estudou cinema e ama cinema desde criança.

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